sábado, 20 de setembro de 2014

entrevista com Lindbergh na Ele Ela (1992)

Seguindo a linha de entrevistas resgatadas de revistas eróticas antigas, segue abaixo uma entrevista que o Lindbergh Farias concedeu à Ele Ela em 1992. Na época ele ainda era o líder dos "caras-pintadas", presidente da UNE e membro do PCdoB. A entrevista foi concedida para a edição de dezembro da publicação. Os encontros com o repórter devem ter acontecido em novembro - após a votação do impeachment de Fernando Collor (em 29 de setembro) e um pouco antes da renúncia do ex-presidente (em 29 de dezembro), manobra realizada para evitar uma condenação pelo senado pelo crime de responsabilidade. Itamar Franco assumiu a presidência interina em 2 de outubro.

Essa matéria da Folha de S. Paulo lembra um pouco o movimento dos caras-pintadas:
As denúncias, que se intensificaram por todo o mês de maio, culminaram com a formação do Movimento pela Ética na Política, composto por 18 entidades civis, como centrais sindicais, OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 
No dia 29 de maio daquele ano, o movimento organizou um fórum pelo afastamento de Collor que contou com a participação de mais entidades, como partidos políticos e a UNE (União Nacional dos Estudantes).
Tanto a matéria da Folha, quanto a entrevista na Ele e Ela lembraram da minissérie Anos Rebeldes, da Rede Globo, que era exibida na época: 
A Rede Globo estava passando a minissérie Anos Rebeldes, de Gilberto Braga, que falava sobre o papel dos estudantes contra a ditadura. Em nossa primeira passeata, a gente colou um cartaz que dizia "Anos Rebeldes, Próximo Capítulo"
A página da UNE na Wikipedia aponta que o Lindbergh se tornou presidente da entidade em 1992 com a bandeira "Fora Collor": 
"Passada a eleição, a bandeira do Fora Collor foi aprovada no Congresso da UNE de 1992, realizado em Niterói. Com esta bandeira o estudante paraibano Lindberg Farias tornava-se presidente da entidade. Na medida em que as denúncias contra o governo Collor tornavam-se mais graves, o movimento organizado ganhou uma cobertura nacional o que o transformou no principal motor na campanha pelo impeachment. As passeatas reuniam centenas de milhares de pessoas, com destaque para Rio de Janeiro e São Paulo (que chegou a reunir 500 mil pessoas em 25 de agosto de 1992). O final da jornada de luta estudantil foi um alívio: ao contrário do que ocorrera com as Diretas-Já, o impeachment foi aprovado e o presidente afastado."
A página do próprio Lindbergh na Wikipedia faz um resgate da história familiar do ex-cara-pintada:
"Seu avô era eleitor do Partido Comunista. O pai estudou no Rio e foi vice-presidente nacional da UNE em 1961. Segundo ele mesmo diz, ele cresceu cercado de livros sobre o pensamento da esquerda e, aos catorze anos, já se dizia socialista. Aos dezesseis filiou-se ao PCdoB, onde atuou no seu braço juvenil, chegando a ser presidente nacional da União da Juventude Socialista - UJS alguns anos depois. 
Aos dezessete anos, começou a estudar medicina na Universidade Federal da Paraíba. Em 1990, entrou para o DCE (Diretório Central dos Estudantes). Aos 21 anos, foi eleito secretário-geral da União Nacional dos Estudantes (UNE) e se mudou para São Paulo. 
Em 1992, Lindberg Farias foi eleito presidente da UNE, fato este considerado o início de sua carreira política. Naquele ano, conheceu o petista Luiz Inácio Lula da Silva".
Segue abaixo a entrevista na Ele Ela:

***
Lindbergh Farias: O Líder Cara-Pintada
por Léo Borges

Ele era apenas mais um estudante do curso de Medicina da Universidade Federal da Paraíba, quando resolveu lutar para melhorar os laboratórios de sua escola. Acabou entrando para o centro acadêmico, depois para o DCE e, finalmente, chegou à presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE). Aos 22 anos, este típico filho de uma família de classe média nordestina trocou um futuro como médico (igual ao pai) para, como advogado, poder interferir na história do Brasil. Acabou transformado nos últimos meses na mais nova e das mais importantes lideranças políticas do país. Tão requisitado que, num espaço de dois dias, tivemos de ouvi-lo na sede da UNE, em Vila Mariana, São Paulo, e no aeroporto Santos Dumont, no Rio, onde fazia uma escala entre os vários vôos que o levaram nestas 48 horas também a Cuiabá, João Pessoa e Campinas.


Conheça agora o que pensa um dos principais responsáveis pela mobilização pelo impeachment de Collor.


ELE ELA - Por que, depois de fazer três anos de Medicina, você resolveu mudar para o curso de Direito?
Lindbergh - Fiz vestibular muito novo, mas depois vi que não gostava de Medicina, pois gostava de Ciências Sociais e era obrigado a estudar Biologia, Matemática, Física. Eu tinha mais inclinação para áreas humanas e para uma profissão que tivesse mais o lado social. Fiquei com medo de, como médico, me transformar em mero agente passivo da história, deixando que as coisas acontecessem sem poder interferir no quadro de injustiça que existe no país. Como advogado teria campo para essa atuação.

- Você já tinha alguma formação política antes da universidade?
- O clima em minha casa foi propícia para minha formação política, meu pai foi vice-presidente da UNE; sempre foi um cara muito voltado para literatura.

- Quantos são em sua família? Todos fazem política?
- São três irmãos. Uma irmã já se formou em Medicina, meu irmão em Direito. Tenho um mais novo, secundarista ainda, e cada qual age politicamente de sua maneira, mas dentro de uma organização só eu.

- Você é filho de pai rico?
- Sou filho da classe média. Meu pai é médico, minha mãe é assistente social, professora da universidade. Tive espaço para ter uma formação em termos culturais, educacionais. Fui formado participando de discussões sobre a vida cultural. Então sou fruto dessa minha formação e acabei tendo espaço para a participação política.

- Seu pai milita politicamente ainda?
- Meu pai não mexe mais com política, largou na época de estudante. Ele foi da geração dos anos rebeldes. Gosta muito de política, mas sua participação se limita hoje ao voto.

- Como foi sua adolescência?
- Foi como a de qualquer outro, eu tinha até prancha de surfe. Morava na praia, em João Pessoa, jogava frescobol, era um aluno extremamente estudioso, aplicado, e praticava muito esporte. Fiz natação dos sete aos 16 anos, participava do campeonato brasileiro. Depois pratiquei pólo aquático, durante cinco anos. Jogava também futebol na praia, mergulhava com meus amigos, fazia pesca submarina. Foi um período muito bom de minha vida, muito ligado à natureza.

- Sexo para você era também uma coisa natural, havia aquela coisa de comer as priminhas, sair com prostitutas, ou você aprendeu com amigos do mesmo sexo?
- Conheci sexo com uma namoradinha, quando eu tinha 13 anos. Ela era um pouco mais velha. Mas eu também fui com outros amigos e tudo mais. Acho que comecei minha vida sexual da melhor forma possível.

- Você tem preconceito contra o homossexualismo?
- É difícil fazer de conta que não se tem preconceito algum sobre nada. Minha geração tem esse preconceito com o o homossexualismo, mas tento romper, embora cada um traga em sua formação cultural um pouco.

- Qual o seu grande orgulho?
- Ter derrubado o presidente da República, ou melhor, ter presidido a UNE nesse momento histórico.

- Ele não cairia sem você?
- Cairia, mas não cairia sem a juventude. Poderia ter outro em meu lugar mas ele poderia não conseguir canalizar a voz da juventude, da mesma forma como poderia ter alguém que até canalizasse melhor que eu, tudo isso.

- Numa entrevista de tevê você disse que na derrubada do Collor você foi mais importante que qualquer deputado...
- Eu acho que como presidente da UNE fiz um papel mais importante do que o de qualquer deputado, sim, ou seja, as entidades populares, as pessoas mesmo sem ter cargos podem fazer um papel importante na vida desse país.

- Esse seriado da Globo Anos Rebeldes teve algum peso nessa sugeração e no tipo de movimento que você liderou?
No começo pode ter tido, mas não foi determinante. Aquilo mostrou para a juventude que os estudantes de 1969, apesar da repressão, tiveram coragem de ir para as ruas gritar. Então, quando chegou o reajuste das mensalidades nas escola, a UNE e a UBES foram a todos os locais despertando os estudantes: "Estão falando que você é alienado, que é da geração coca-cola, a universidade está praticamente se acabando, as escolas particulares aumentaram em 100 por cento as mensalidades este mês, e você vai ficar aí de braços cruzados?" O determinante foi a revolta. Não só com a corrupção do governo Collor, mas também com a miséria. Chegar em casa e ver o pai desempregado por causa da recessão e ter de pagar 100 por centro de reajuste nas escolas de um mês para o outro! O determinante para mim foi a crise social, mas esse elemento subjetivo dos Anos Rebeldes ajudou também. Toda vez que a juventude, do mundo inteiro, está sem perspectivas de futuro, ela vai às ruas, por exemplo, no Leste Europeu, na queda do Muro Berlim, em Woodstock, sempre foi assim.

- Você pode fazer alguma comparação entre a geração de seu pai, essa dos Anos Rebeldes, e a geração de jovens que você lidera?
- Somos muito perseguidos por essa geração; tentam comparar muito. A gente tem de ver que são dois momentos históricos diferentes. Em 1968, a juventude estava influenciada por aquele maio de 68 na França. Daniel Vermelho, e também pela resistência contra a invasão de Praga pelos russos. Uma geração que tinha como símbolos Guevara e Fidel Castro, que sofria influência das lutas dos países africanos pela liberação, que ao mesmo tempo aqui no país sofria com a ditadura, mas que tinha coragem de exigir liberdade, democracia e até de sonhar com o socialismo. Essa geração fez também a revolução sexual, teve Woodstock, abertura total, drogas, sexo e rock. Minha geração vive um outro momento, o da queda do Muro de Berlim, do desmantelamento da União Soviética. Apesar disso, a juventude foi para as ruas, porque a crise passa por cima disso tudo. Mas, indiferente ao que acontece no mundo, passou por cima do individualismo e criou uma nova onda coletiva.

- Esse pessoal tem consciência política do que está fazendo?
- Não se pode exigir que o nível de consciência dessa juventude seja grande. É exigir demais. Ela começa a armar suas próprias idéias, ter a sua própria ideologia sobre o mundo. Esse é o ponto nodal, pois acaba com aquele jovem que não queria saber de nada. Essa juventude não sente, como a de 1968 sentia, de transar com todo mundo e fumar maconha na praça escutando Bob Dylan, contestar pela forma.

- Essas explosões nesse momento precisam de liderança?
- Depende de cada momento. Aqui, no Brasil, essas mobilizações foram pressionadas pelas entidades, que sentiram o clima de revolta que existia nas universidades. Quando a gente disse que ia fazer uma grande passeata, a imprensa não levou a sério. Mas a gente sabia que seria muito grande mesmo. A imprensa foi toda para o aeroporto receber os brasileiros que tinham recebido medalha de ouro nas Olimpíadas de Barcelona e foi pega de surpresa com nossa gigantesca passeata. Mas, não existindo clima, não adianta. Tem momentos que são as lideranças que comandam, noutros são as entidades. Agora, tem casos em que, as entidades não lutam num momento histórico, perdem o bonde e a massa passa por cima. Nós fizemos a mobilização no momento certo e digo mais, se não tivesse vindo aquela passeata no dia 11, esse impeachment não seria aprovado. Não teria havido a pressão popular.

- Popular não, ali só havia os filhos da burguesia, da classe média e rica...
O povão em si não é mais estudante, nem é operário, a grande massa de brasileiros vive por fora da sociedade. O presidente Itamar Franco está preocupado com isso, com uma convulsão social, pois essa política econômica recessiva está levando o país a um grau nunca imaginado de pobreza. Isso pode transformar esse país num barril de pólvora. Os arrastões do Rio e a revolta dos pivetes em São Paulo foram uma espécie de guerra civil sem ser planejada, sem ser organizada.

- Essa juventude cara-pintada que foi as as ruas contigo era só de colégios particulares ou havia também gente das favelas , dos bairros de periferia?
- O grande mérito do nosso movimento é ter conseguido ganhar as escolas particulares e públicas, reunir não só universitários mas também secundaristas. Tinha todo tipo de jovens: carentes e pessoas com melhores condições.

- Você é um dos últimos comunistas no mundo e militante do PC do B, um partido considerado politicamente arcaico. Como explica um jovem como você metido nisso?
- Para entrar nessa discussão tem de ver o que é realmente arcaico, porque estão tentando passar a imagem da modernidade collorida. Tiramos o Collor, mas querem manter a filosofia de modernidade dele: modernidade só de carro importado e jatinho. Modernidade que eu vejo é o cidadão poder comer três vezes ao dia. Arcaico é a pobreza, é a miséria generalizada.

- Mas o comunismo fracassou no mundo inteiro, Lindbergh!
- A maior crise que existe no planeta hoje é a crise do capitalismo. Está aí o desemprego crescendo nos Estados Unidos e nos países que exploram o Terceiro Mundo. O capitalismo significa misérie, exploração ao extremo dos povos do Terceiro Mundo. Já o socialismo é um sistema em que os meios de produção estão nas mãos dos operários, de um governo popular, um regime baseado na justiça social e na fraternidade.

- Mas na União Soviética, no Leste Europeu, isso não funciona assim e a pobreza acabou derrubando a burocracia e a tal ditadura do proletariado!
- Claro que não podemos esquecer essa lição e que o socialismo deve ser construído de acordo com a realidade de cada país. O socialismo não deve se prender de forma alguma a outros modelos. O socialismo que queremos deve se preocupar muito com os erros do passado, como a burocratização e a falta de canais democráticos daqueles que não faziam parte do partido oficial para poderem interferir nas decisões. Mas teve muitos acertos também nas áreas da saúde e da educação. Dizer que o socialismo enquanto sistema social foi derrotado é um absurdo. Sofreu uma derrota parcial, mas voltará e voltará com força, por causa das grandes contradições do capitalismo. Tem até quem diga que a história morreu. Não posso aceitar isso, pois leva à passividade, ao ceticismo. Acho que é possível transformar esse Brasil das crises e desigualdades num Brasil diferente, sem miséria. Por isso sou comunista, sou do PC do B.

- É por isso que você é contra as privatizações? Por preferir o estado patrão?
- No momento, até os que são favor de privatizar tudo deviam estar unidos contra a forma como as privatizações estão sendo feitas, entregando as estatais por moeda podre, que não vale nada. Mas também sou contra a privatização de setores estratégicos para o desenvolvimento do país. Esses setores são intocáveis. Falam na ineficiência das estatais. Mas será que é culpa das estatais mesmo ou da administração da política corrupta em cima dessas estatais?

- Por que a UNE fracassou na mobilização na porta da Bolsa de Valores do Rio ao tentar impedir a estatização da Acesita? A massa ainda não captou a mensagem?
- A gente não queria fazer um movimento de massa com estudantes. A gente quis apenas marcar posição. Passamos em alguns centros acadêmicos convidando as pessoas, mas não fizemos os arrastões que a gente fazia nas salas de aula, pois não havia condições para isso. A discussão sobre estatização ainda não existe entre os estudantes.

- Financeiramente, a UNE vive de quê?
- A UNE vive dos seminários e congressos que ela realiza. Agora há também a venda de carteira de estudantes. Com a carteira da UNE o estudante paga meia entrada em cinema, teatro, shows e até em transporte coletivo. O dinheiro não é muito e vivemos graves problemas financeiros, principalmente nessas passeatas. Tivemos de gastar muito em cartaz, panfletos e carros de som.

- Mas você viaja pelo Brasil inteiro de avião. Quem é que paga por isso?
- Sempre que viajo para algum debate, os organizadores ou entidades que convidaram mandam as passagens de ida e volta. Não só eu, outros diretores da UNE também. Quando isso não é possível, aí a UNE tem de bancar para mim e para os outros diretores.

- Você já viajou para o exterior?
- Já, conheci a Disneyworld, quando tinha 11 anos, e fui também à Europa, já mais adulto.

- Em que o Collor era diferente do Itamar?
- Em quase tudo. O Itamar inclusive está querendo se portar como o anti-Collor, dispensou até o porta-voz para falar diretamente com a imprensa: tem um estilo humilde de vida. Acho que na política é ainda mais acentuada a diferença e espero que se diferencie cada vez mais. Ele procura diálogo com diversos setores da sociedade, com estudantes, trabalhadores, inclusive com os representantes das elites no Congresso.

- Representantes das elites não, representantes nossos: seu, meu, do povo.  Ou você questiona o atual sistema eleitoral estabelecido na Constituição?
- Para dizer a verdade, no Congresso há uma porção de lobbies. Tem o lobby dos ruralistas, com sua imensa bancada; tem um lobby que ataca muito a gente, o dos donos de escolas particulares. Na verdade, a maioria dos deputados e senadores está comprometida com as elites. A parcela de deputados que defende os interesses populares é mínima. O fundamental é que existe uma pressão forte em cima desse governo, pressão do FMI, do capital estrangeiro, para que continue no mesmo rumo de modernização do governo Collor. Por isso, deve existir por parte dos estudantes, dos trabalhadores, a pressão no sentido contrário, para mostrar ao Presidente Itamar que, se ele não tentar amenizar a crise que a gente está vivendo, em pouco tempo seu governo estará desgastado perante a sociedade.

- Essa é a posição do PC do B também?
- Não, a do PC do B é outra. Essa é da UNE. Desde o processo de impeachment a gente deixava bem claro nas passeatas que nosso objetivo não era tirar Collor e colocar Itamar. Era exigir mudanças de fato na sociedade.

- No parlamentarismo isso seria diferente?
-  A UNE não tirou posição sobre isso. ela vai começar a estudar isso no final de dezembro, em Brasília. Sou favorável ao parlamentarismo, mas sem o voto distrital misto, pois estaríamos correndo o risco de dar um golpe na democracia. As minorias seriam alijadas das decisões. E a democracia sempre entra em jogo quando não consegue abrir espaço para determinado pensamento político. Há uma manobra dos grandes partidos políticos contra o sistema proporcional que fere radicalmente o princípio da minoria.

- Você recebeu convite de alguns partidos políticos para se candidatar nas próximas eleições. Você é candidato a quê?
- Não sou candidato a nada. Sou candidato a ser o resto da vida um cidadão comum que está querendo dar uma opinião política. Mas quero fazer isso como advogado apenas.

- Se não vai ser candidato a cargo eletivo, quais são seus planos como presidente da UNE, então?
- Nossa gestão foi vitoriosa, mudou a face da UNE, que agora está mais representativa e tem mais acesso aos estudantes. No momento estamos lançando um projeto de educação para o Brasil que vai em cima das questões das escolas particulares, dos aumentos das mensalidades, das verbas para as universidades. Estamos também desenvolvendo um projeto de alfabetização e os estudantes universitários podem auxiliar muito nesse processo. Nesse plano pretendemos ir às favelas, ao campo, aos locais de trabalho. Também está para ser votada a Lei de Diretrizes e Bases de Educação, a LDB, a lei complementar do capítulo de educação da Constituição. Então é um momento de grandes decisões. No próximo ano, também vai ter a revisão constitucional, o momento em que a UNE vai empunhar com força a bandeira da educação para todos.

- Vocês sempre falam de verbas para as universidades, onde estudam de graça os filhos de papai rico e se esquecem do ensino básico, público e gratuito para a imensa maioria da população...
- Deve existir incentivo ao ensino básico em turmas do Primeiro e Segundo Graus. Mas não tirando recursos das universidades, pois elas não existem apenas para formar recursos humanos, engenheiros, médicos, advogados. É das universidades que saem 90 por cento da produção científica e tecnológica do nosso país. Então, retirar recursos das universidades federais é acabar com a possibilidade de desenvolvimento do país.

- Essa geração que você lidera é menos preconceituosa em relação a sexo e drogas do que as anteriores. Como você encara isso?
- Não diria assim. Diria que é mais pé no chão. Ninguém hoje transa por transar. Transa porque está a fim, porque gosta da pessoa. E eu acho que tem menos drogas, e que aquele modismo que existia numa época hoje não existe tanto. Não quero negar que existam as drogas, claro, mas essa nova geração está sabendo trilhar os caminhos corretos.

- Você gosta de maconha?
- Eu não consumo drogas, mas não me acho careta. Tenho amigos que fumam maconha. Inclusive sou contra a forma como tratam hoje o assunto. Sou a favor da descriminalização da maconha. É uma tremenda injustiça prender um meninote de 19 anos que está fumando maconha num local qualquer, quando se devia tratar mais é das causas de tudo isso e também coibir o tráfico. Hoje não existe entre os jovens discriminação contra quem não fuma. Existe mais liberdade. Então se você me perguntar por que nunca fumei maconha, direi que não sei, nunca tive curiosidade. Talvez por formação mesmo, por considerar que é uma forma de se fugir da realidade.

- Você tem namorada fixa ou você está curtindo seu momento de glória e comendo todo mundo?
- Não sou dos grandes comedores. Sou um cara meio romântico, gosto de me envolver; acho que aí sai melhor. Acho que o sexo é melhor quando se conhece mais a pessoa. Se bater tesão só na hora, depois é aquele vazio, você se arrepende. Por acaso estou uma namorada agora, namorada fixa.

- Sua namorada é contrária a você politicamente?
- Ah, sim, você não pode querer que a pessoa esteja a seu lado seja reprodutora de seu pensamento. Mas é claro também que eu não namoraria uma pessoa com quem eu não tivesse condições mínimas de conversar sobre qualquer coisa, mesmo com posições diferentes.

- Você exige fidelidade de suas namoradas?
- Não sou o machista clássico nem um neomachista, mas tento vencer todas as formas de preconceitos, de barreira. Tento me policiar em relação ao machismo porque, querendo ou não , a gente traz um pouco disso, na formação cultural, mesmo sem querer e sem saber. Tem relações em que acho importante a fidelidade, tanto minha quanto dela. Tem outras que não.

- Qual é o tipo de mulher de sua preferência?
- Uma mulher bonita, morena. Sou louco por morena, uma boca carnuda. As morenas são especiais. Morenas altas, de preferência de olhos puxados. Batem as louras. A Luíza Brunet é muito bonita. Tem a Isadora Ribeiro que também acho linda.

- Além das menininhas, qual é seu lazer?
- Meu lazer é esporte, desde quando eu era pirralho. Esporte, livros, cinema e música. No momento estou alucinado com reggae. É a onda do momento. Gosto também do The Doors, Raul Seixas, Pink Floyd, Bob Dylan. Gosto de MPB, Caetano Veloso.

- Você pratica alguma religião, acredita em Deus?
- As religiões foram usadas em diversos momentos da história como instrumento de alienação, como forma de esconder a realidade. Diziam que havia o paraíso depois da morte e que quem sofresse aqui depois ia para o céu e quem o explorava ia para as chamas do inferno. Engodo. A religião era o chamado ópio do povo. Atualmente, porém, há uma parte da igreja católica que fez a opção pela libertação dos povos, e faz um papel importante na mudança da realidade.

- Sua família tinha religião?
- Simpatizava com a católica, mas não sou muito de igreja. Fui batizado, estudei em colégio de padres maristas, no Pio X, mas isso não influenciava. Sou muito cético, me considero um materialista. A ciência hoje consegue explicar quase tudo, acredito mesmo é na teoria científica da evolução.
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Dois anos depois desta entrevista, Lindbergh concorreu ao cargo de deputado federal pelo PCdoB. Migrou para o PSTU e depois só conseguiu se eleger quando passou a fazer parte do PT. Foi prefeito de Nova Iguaçu, hoje é Senador pelo Rio de Janeiro e candidato ao governo do Estado do Rio de Janeiro. A página da wikipedia dele fala um pouco mais sobre essa carreira pós-cara-pintada. Durante a pesquisa para essa pequena biografia do candidato, encontrei algumas páginas administradas por um povo puto da vida com o Lindbergh. Se quiser dar uma olhada é só clicar nos links a seguir: 1, 2, e 3

Há dois anos, o Estado de Minas fez uma matéria sobre os caras-pintadas, e conversou com algumas pessoas que foram pra rua na época. Um deles é o o ex-ministro da Saúde e atual candidato ao governo de São Paulo, Alexandre Padilha: 
“Mostramos, da nossa forma, que as passeatas estudantis poderiam influenciar a política no país”. Ele conta que o sentimento dos estudantes era de muita felicidade, pois o país estava ouvindo o que tinham a dizer. 
Padilha diz ter absoluta convicção do saldo histórico que o movimento do impeachment trouxe e opina: “Reforçamos o debate sobre termos cada vez mais no país instituições que valorizem a democracia”. Ele acredita que o processo foi uma marca na construção do Brasil atual, por ter feito seu primeiro presidente eleito por voto popular depois da ditadura passar por um processo de impedimento pacífico, democrático e com regularidade institucional."

terça-feira, 16 de setembro de 2014

entrevista na Ele Ela (1986) com o Fernando Gabeira

Dia desses comprei uma Ele Ela de março de 1986 com a Edna Velho (que virou atriz da Praça É Nossa e também mãe de um dos filhos do Romário) na capa num sebo no centro da cidade (veja aqui a capa da revista).

Comprei pra ler a entrevista com o Fernando Gabeira, que, naquele mesmo ano, se candidatou ao governo do estado do Rio de Janeiro pelo Partido Verde (o artigo da Wikipedia diz que foi pelo Partido dos Trabalhadores) contra o Moreira Franco e o Darcy Ribeiro. A eleição iria decidir quem seria o sucessor de Leonel Brizola, que estava em seu 1o mandato como governador do estado.

Na época ele tinha 45 anos e já era um maluco beleza, mas com pé no chão. Se declarava adepto da teoria de Desobediência Civil. A entrevista foi realizada por Sérgio Costa. Segue abaixo:

ELE ELAFernando Gabeira, você é realmente candidato ao governo do Estado do Rio de Janeiro?
Fernando Gabeira – Sou.

- E como surgiu essa candidatura?
- Há cerca de um ano nós estamos fazendo um trabalho de base no Rio de Janeiro para deflagrar o movimento ecológico e o Partido Verde. Ao longo deste trabalho, nós constituímos com outros companheiros um organismo Assembléia Permanente do Meio Ambiente, onde se reúnem todos os grupos que estão trabalhando com ecologia no Rio de Janeiro, mais algumas associações de moradores que têm problemas específicos ligados a isso e outras entidades como a FAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Rio). Simultaneamente, estamos criando grupos que estudam questões específicas do Rio de Janeiro. Esse trabalho ampliou muito meu conhecimento sobre os problemas ecológicos e me deu uma base para entender que é possível fazer alguma coisa.

Ao mesmo tempo, na medida em que a situação que está aí foi ficando mais grave, sobretudo a partir da morte de Tancredo, senti que precisava me envolver pessoalmente na tarefa de transformação do país de uma maneira mais decidida.

- Isso quer dizer que, até então, não passava pela sua cabeça uma atuação política mais específica?
- Sempre esteve. Eu considero que até a minha vagabundagem foi uma preparação para esse momento. Porque era uma vagabundagem dedicada a conhecer mais o Brasil. Conversar com as pessoas, leituras, meditações em Alcântara, em Porto Seguro, no interior de Minas, as voltas pelo Brasil, tudo isso foi um processo de acumulação de conhecimento e de energia para começar este trabalho. A morte de Tancredo revelou que o Brasil é muito dependente de um líder, de líderes que conduzam seu processo. E eu compreendi que é possível contribuir para transformar esse processo inaugurando políticas que estimulem as pessoas a assumirem suas responsabilidades.

- E você, pessoalmente, em determinado momento também se colocaria como líder?
- Exatamente. Para negar isso adiante. Você se coloca como um líder num determinado momento para mostrar às pessoas que elas podem superar essa dependência. Acontece que, quem tem se colocado assim é para ficar líder para sempre. A gente acha que é possível conduzir as pessoas a ter uma confiança maior na organização coletiva.

- Politicamente, como você pretende viabilizar essa candidatura?
- Eu tenho o apoio do Partido Verde com o qual trabalho, do Partido Humanista, o PT deve decidir em breve…

- Algum problema com o PT?
- Nenhum. As coisas têm marchado muito tranquilamente…

- Estou perguntando porque o PT aqui do Rio é meio assim…
- É, eles estavam meio assim, mas agora é uma chance para eles também pegarem um barco mais amplo, mais aberto. E o PSB, que ainda vai examinar a questão, ainda não está definido, para o PSB ainda há certos problemas porque é um grupo com posições mais… mais assim…

- Ortodoxas?
- É, ortodoxas.

- E é para vencer, Fernando?
- É para vencer. Vamos disputar para ganhar.

- E em que faixa do eleitorado você acha que corre sua candidatura?
- A gente já sabe que na classe média nossa candidatura tem uma boa penetração. E nela, entre as mulheres e os jovens, muito boa. Mas eu acho que existe a possibilidade muito grande de uma relação com um lado do Rio para o qual meu trabalho também está voltado, que é o lado mais marginalizado, mais marginal, do morro, da favela, pelo trabalho que tenho sobretudo no campo dos direitos humanos, as denúncias da violência policial, do racismo. Isso tudo pode servir como uma ponte de aproximação.

- Em que linguagem? Essas pessoas, eu acho, estão de uma maneira geral mais acostumadas a terem como referencial político a figura paternalista de um Brizola, por exemplo. Ou seja, acho que têm uma visão mais clássica do político.
- Eu acho que a linguagem fica mais difícil quando você coloca a coisa política. Mas eu trabalho nas cadeias, tenho contato e discuto com presos quando vou às cadeias e eles não têm nenhuma dúvida de que sou um político fazendo um tipo de política que eles entendem perfeitamente. Freqüento os morros trabalhando, converso com as pessoas e sou muito bem recebido. Subo e desço os morros sem dizer “sou fulano de tal”. Agora, enquanto candidato, vai ser mais fácil. É evidente que eu não tenho nada para oferecer às pessoas além da possibilidade de lutarmos juntos e nisso eu fico em desvantagem em relação àqueles setores que podem oferecer coisas concretas, materiais inclusive.

- Você é uma pessoa com bom trânsito na imprensa, a despeito de ser também um jornalista, e acho que isso vai ser importante para sua candidatura, mas, por outro lado, as últimas eleições mostraram a importância da televisão para decidir as paradas, do debate com os outros candidatos, como você se sente em relação a isso?
- Nossa campanha vai se desenvolver muito nitidamente na televisão, mas acho que ela tem uma coisa que limita muito ao fazer do público espectador de um debate entre pessoas inteligentes e articuladas e não coloca muito a questão da participação. A minha diferença em relação aos outros candidatos é que estou na rua, lutando junto com as pessoas, estou correndo da polícia junto com elas. Essa é a diferença fundamental.

- Gabeira, que análise você faria do governo Brizola no Rio de Janeiro?
- Há dias fui perguntado por uma repórter, a partir de uma proposta da Frente Liberal, se toparia participar de uma frente anti-Brizola. Eu respondi que não era antininguém e sim a favor de um programa alternativo de governo que já estava tentando formular com outros companheiros. Que nós éramos a favor da construção de uma experiência nova no Rio de Janeiro que possa repercutir positivamente em outras experiências latentes no Brasil. Então, não tenho muito tempo de ser contra o Brizola. Evidentemente, sei distinguir uma coisa que faz parte do meu compromisso com o PT, no caso de nós virmos a marchar juntos, de ser oposição ao Brizola no campo estadual. Mas em nível federal, em certas circunstâncias que ainda não estão definidas, muito possivelmente a gente caminhará junto.

Aqui no Rio, o governo dele teve algumas intuições interessantes, como a de sair construindo escolas, CIEPs, mas cometeu uma série de erros que devem ser examinados e criticados. Ele tem uma tendência muito forte À centralização, a não permitir que as pessoas decidam, o que atrapalha muito o processo de desenvolvimento delas. Ele construiu as escolas sem fazer uma crítica do que é o processo de educação mesmo, o que é educação, como se a escola em si fosse uma coisa ótima. Ele definiu esse caminho de construir escolas e abandonou muito outros setores como o da saúde, por exemplo, que é um setor vital e está caótico. Ele não avançou quase nada no setor de segurança das penitenciárias que não depende só dele, mas que ele poderia contribuir muito. O governo do Brizola fez apenas um pouco mais do que os outros governos conservadores que estiveram por aí. Pode ser suficiente para o povo gostar dele tomando como referência os governos anteriores, mas ainda é uma proposta muito atrasada para as necessidades do Brasil.

- Qual será a prioridade de seu governo?
- Justiça social. Vamos tentar melhorar a qualidade de vida da população num quadro de crise econômica, política e moral. Nossa prioridade é transformar as condições de vida da população mais pobre e, ao mesmo tempo, tentar evitar o processo de degradação e decadência das condições ambientais do Rio e do resto do estado. Ou seja, corrigir a distorção, que é o elemento fundamental da história do Brasil contemporâneo, da distância entre pobres e ricos. Desenvolver o Rio no conjunto com a perspectiva de progresso que leve em conta a preservação do meio ambiente, dos recursos naturais não renováveis, das belezas naturais. Para isso é preciso fazer um governo capaz de apresentar soluções que estão fora das possibilidades dos conservadores que seja originais e baratas, pois nós vamos trabalhar num quadro de crise e de muito poucos recursos.

- Dê um exemplo disso.
- Um dos maiores problemas do Brasil são as crianças abandonadas. Chegam a oito milhões. Não tenho uma estatística de quantas delas estão no Rio, mas vamos fazer um projeto que em seis meses altere esta situação radicalmente. Só que para fazer este projeto nós não temos dinheiro. Onde estaria a solução original? Na legalização do jogo do bicho. Não é estatizar, veja bem, é legalizar. Acoplar fiscais aos computadores dos bicheiros e transformá-los em empresários sérios, respeitáveis. Com o dinheiro que virá disso, criaremos escolas e oficinas de rua.

- Como pensa em realizar isso com o estado apoiado em cima de uma burocracia tão decadente e emperrada?
- Nós já enfrentamos o Exército com revólveres 22 enferrujados e a polícia de braços abertos na nossa desobediência civil pacífica. Se formos eleitos com apoio popular, não vamos nos dobrar diante de uma burocracia corrupta. Eles vão se defrontar pela primeira vez com um governo popular. E o governo popular é muito mais forte que qualquer governo militar, porque tem por detrás, a decisão do povo que se deve botar para trabalhar quem nunca trabalhou e se demitir quem vive à custa da população sem fazer nada. Esse choque inevitável nós levaremos vantagem. Será a briga mais fascinante do do princípio do governo. O Brasil vai se transformar num país sério em que a burocracia seja realmente uma coisa voltada para atender aos interesses do povo, impessoalmente, independente de padrinhos, cupinchas ou pistolões.

- Por falar em Brasil, como você vê essa reviravolta na economia do país?
- Esse pacote foi um pouco baseado na experiência argentina. Só que quando você começa a comparar a experiência argentina com a brasileira, encontra uma diferença básica: eles têm um governo eleito com apoio de 75% da população. A Argentina tem um governo eleito no qual ela confia para conduzir o país nessa crise. Há um acordo político lá que não existe por aqui. O governo que está no poder hoje não tem o mesmo nível de apoio popular ativo que o argentino, o que desloca um pouco as possibilidades do plano. Em segundo lugar, o plano tanto lá como cá traz uma perda de poder aquisitivo da classe operária e demais assalariados. Na Argentina, houve uma perda de 20% que a classe operária está suportando em função do acordo político, mas no Brasil essa perda ainda não está determinada, mas você já pode ver mecanismos que justificam temer a desvantagem para os pobres. Primeiro congelam os salários e os preços – o salário é fácil, porque é o patrão que paga, mas os preços são difíceis porque a Sunab tem um número irrelevante de fiscais e tá todo mundo remarcando os preços freneticamente hoje (a entrevista foi feita no dia do pronunciamento do Presidente Sarney). Quer dizer, os salários está implacavelmente congelados e os preços flexivelmente congelados.

- Bom, mas é aí que entra participação popular. Ou o povo ajuda a fiscalizar os preços ou ele entra pelo cano…
- Ainda que o povo fiscalize, existe elementos difíceis de serem controlados. Produtos que nem todo mundo sabe exatamente qual é o preço.

- Qual foi a jogada do governo na sua opinião?
- A elite que está no poder é, na verdade, o segundo fôlego da ditadura. Nós estamos assistindo a uma segunda morte da ditadura. A ditadura militar caiu e em seu lugar veio o esquema da dissidência do PDS. Eles tomaram essas medidas – a questão chamando Programa de Estabilidade – numa relação muito grande com os credores externos, diante dos quais eles estão pressionados a conter a inflação, e diante de uma situação interna também problemática, uma vez que a especulação está cada vez maior e o envolvimento no processo produtivo cada vez menor. Então resolveram, num tratamento de choque geral, penalizar um pouco os trabalhadores, garantir um pouco mais de sacrifícios por parte deles, mandar um recado as credores externos no sentido de que estamos dispostos a tudo para conter a inflação e finalmente tentar rever um pouco esta situação especulativa em que os capitais rolam muito mais nos processos financeiros do que nos produtivos. As intenções são essas. Agora, eles estão jogando tudo. Depois do fracasso desse plano tudo pode acontecer…

- Você está especulando o fracasso do plano ou afirmando isso?
- Acredito que o plano vai fracassar. Primeiro porque não acho que a inflação seja produto de uma série de medidas financeiras que se altere com outra série de medidas financeiras. No meu entender, a inflação é produto de situações objetivas, de relações sociais muito claras que permanecem intocadas. Vem um e diz “a inflação é provocada pelo aumento dos produtos agrícolas”; ora, você vai congelar o preço dos produtos agrícolas para baixar a inflação? Isso não pode. Você só altera a situação dos preços agrícolas no dia em que realmente aceitar a idéia de que se tem de fazer uma reforma agrária. E a reforma agrária eles não têm coragem de fazer.

- Mas a idéia que está rolando por aí é a de que “alguma-coisa-precisava-ser-feita”.
- Bom, foi mais uma admissão de que a inflação está sem controle e nesse processo se perderia toda a credibilidade dos banqueiros internacionais. Tiveram que tentar uma outra saída porque neste pique a própria margem de lucro do capital está ameaçada. Daí a reorganização da economia.

- E como isca para novos capitais internacionais investirem por aqui?
- Não creio. O que ele pode tentar incentivar é o deslocamento internamente do capital produtivo, que é uma das esperanças claras do Funaro e ele tem dito isso claramente. Mas vamos imaginar as primeiras horas do plano. Em primeiro lugar, o plano vazou. Logo, os especuladores, que seriam o alvo, levaram uma grande vantagem em dois dias.

- Mas você falou antes que diante do fracasso desse projeto tudo pode acontecer. A gente podia especular um pouco sobre isso.
- Claro. A história moderna… não diria nem a história moderna, eu diria a história recentíssima, nos mostra que tudo é esse que pode acontecer. E eles receberam aí em Fernando de Noronha um amigo ilustre, chefe da polícia de Baby Doc no Haiti, que podia contar o que que pode acontecer. Ou seja, pode acontecer o que houve no Haiti, ou nas Filipinas, ou pode acontecer aquilo que nós sempre propusemos de uma maneira pacífica: Aceitem o direito do povo escolher seus representantes. Parem de usurpar.

- Ou ainda pode acontecer uma messianização do processo político brasileiro com o povo entregando o poder a um Messias que pinte como o seu redentor…
- Não tem dúvida que isso também pode. Mas, mesmo assim, ainda seria um processo de escolha direta e você não pode impedir que o povo tenha um Messias, mas pode evitar que ele tenha um ditador. Você pode lutar contra isso, como nós o fazemos, no sentido de buscar um tipo de política que fortaleça a organização popular.

- Fernando, você tem sido um dos responsáveis pela divulgação nestes últimos dias, principalmente, de uma forma de luta chamada Desobediência Civil, inclusive com o ato – desobediência à censura do Presidente Sarney ao filme do Godard, Je Vous Salue Marie. Explica melhor esse termo.
- Essa questão me interessou muito desde o momento em que passei a ver uma perspectiva pacífica de transformação da sociedade, a desacreditar no processo de transformação do Brasil pela luta armada. Passei, então, a buscar experiências políticas que resolvessem uma falsa associação que se tem normalmente entre não-violência e passividade. Nesse processo intensificou-se também o intercâmbio cultural com o Oriente, passou-se a ler muito sobre o Oriente, sobre a Índia, por exemplo, e a figura do Gandhi ganhou importância, não só para mim, mas a para o mundo inteiro, tanto que virou um filme de repercussão internacional. O Gandhi na África do Sul e na Índia utilizou muito o recurso da desobediência civil pacífica. E eu li na biografia dele que esse trabalho era fruto da leitura de um trabalho do Thoreau chamado Desobedeça. Comecei, então a desenvolver trabalho político, colocando a questão da resistência pacífica e a formular e desenvolver um trabalho político e teórico para deixar as bases para a prática. Procurei com ele uma editora para lançar Desobedeça e com ele as bases para implantar alguma informação teórica que possa num determinado momento vir a ser útil para o Brasil.

- E quais são os momentos da prática da desobediência?
- Surgiram vários momentos da prática para mim, mas eles estavam circunscritos à intervenção, junto com outras pessoas famosas, nas comissões de Direitos Humanos que a gente formou para entrar nos presídios e instituições totais.

Agora com a proibição do Je Vous Salue, Marie abriu-se uma possibilidade de colocar esta questão em termos mais amplos, ou seja, desobedecer. Se tivéssemos colocado a desobediência civil como forma de luta para conduzir as diretas a gente teria vencido.

- A manifestação de desobediência à proibição do Je Vous Salue, Marie visou revelar a verdadeira face da chamada Nova República?
- A questão da proibição do filme é vital para a nossa concepção política. Se nós deixássemos essa questão sem uma participação política, estaríamos com um programa esquizofrênico, um programa que não achava a concreção nas lutas cotidianas, o elo entre ele e as lutas cotidianas. Nós somos contra a proibição do Je Vous Salue, MArie porque somos contra a censura e sabemos que ela não acaba com uma festa no teatro Casa Grande e sim na rua, na luta de rua pela liberdade de expressão e circulação de idéias no Brasil que, quanto maior for, melhor, mais crescimento teremos. Nós vivemos da iluminação e não do obscurantismo. E o ato teme também o efeito pedagógico de mostrar que para tudo que queremos para a sociedade brasileira é preciso de lutar um pouco para conseguir. Nada nos será dado como uma dádiva do céu.

- Gabeira, quando você retornou do exílio na Suécia trouxe uma discussão a respeito de política do corpo, política sexual, e eu queria saber se isso ainda é uma questão fundamental no seu modo de entender?
- É um prioridade do nosso governo. O esporte, por exemplo, a política relacionada com o esporte, a minha perspectiva é a de democratizar a prática do esporte. Nós vivemos numa cidade em que a prática do esporte é bastante concentrada. A piscina do Maracanã vivia fechada. Os garotos tinham que pular o muro para nadar até que um dia o diretor percebeu e abriu os portões. Existe uma demanda popular muito grande em relação à prática do esporte e uma infra-estrutura social pequena para isso, mas não do ponto de vista competitivo, que pode ser contra uma política contra o corpo e não do corpo. Nós queríamos estimular um processo corporal, a partir do esporte democratizado, voltado para autoconhecimento e autodesenvolvimento pessoal.

Outro dado fundamental para a política do corpo é a da questão da interrupção da gravidez. Um dos movimentos fundamentais do pós-68 foi o feminista e nós vamos encampar um de seus slogans mais importantes na nossa campanha: “Nosso corpo nos pertence”. Qualquer governo humanitário tem que contribuir para que as mulheres tenham seus filhos dentro das melhores condições possíveis mas, também, tem que dar a elas as condições para que interrompam, com o máximo de segurança e apoio, sua gravidez quando assim o decidirem. Nós temos dois milhões de abortos por ano no Brasil e só uma minoria tem acesso a meios seguros, higiênicos e sofisticados.

- E as questões sobre as relações humanas, sobre as relações amorosas, como está a sua cabeça nesse sentido?
- Eu tenho trabalhado muito sobre esse assunto. No Diário da Crise publiquei um trabalho sobre relações sentimentais baseado também na discussão marxista de ponta de alguns sociólogos que estavam mergulhados nesse assunto e que andei pensando pelo meu lado e tentando aplicar um pouco ao Brasil para ver qual era a saída para as relações sentimentais. Sobre muitos aspectos, a família como nós a conhecemos hoje está desaparecendo. Mas nós não inventamos novas fórmulas de relação. A família com um só responsável está se tornando a maioria nas grandes cidades. A Família nuclear burguesa, pai-mãe-filho-filha, está sendo substituída por relações de pai-filho ou mãe-filho. Isto já é uma alteração substancial nas relações provocada pelo próprio desenvolvimento do mundo moderno. Tenho pensado muito sobre isso no campo do futuro da família e das formas de organização que a gente vai ter e muito também na questão do ciúme, como sobrevivência parcial da perspectiva da propriedade privada. Abriu-se para nós um campo de trabalho mais específico. Em vez de fazer a denúncia sistemática disso na sociedade, estamos começando também a realizar discussões específicas sobre a crise do homem e sua adaptação aos novos tempos. Realizamos em São Paulo o 1o Simpósio do Homem onde fiz uma intervenção sobre isso. Sobre as alterações que o homem está passando e vai passar e que ele deve se unir para discutir.

- Quais questões, por exemplo?
- Os homens, hoje, em grande parte já cuidam de crianças desde o parto. E os que tiveram participação ativa nos partos das mães de seus filhos já têm uma visão crítica sobre a participação do homem no parto na sociedade conservadora, que é a de um espectador nervoso, quando na verdade ela pode ser ativa. Outra coisa, grande parte dos homens se vêem na contigência de cuidar das crianças desde o princípio e eles, naturalmente, gostam de discutir essa experiência. Muitos homens gostariam também, como já existe na Suécia, de tirar a licença pós-parto, de cumprir esse papel. Às vezes a mulher tem uma tarefa mais importante e nem está amamentando, mas está de licença. Então, é necessário que a licença seja paga ao pai, ao homem. Destas reflexões devem resultar uma série de medidas e propostas que podem ajustar um pouco a sociedade a essa transformação.

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Hoje Fernando Gabeira se dedica à profissão de jornalista, fazendo matérias para a Globonews e para o G1 e escrevendo artigos para seu próprio blog e para O Globo.

A página da Wikipedia mostra um pouco do que vem sendo a vida política de Gabeira:
"Em 1986, após voltar ao Brasil, Gabeira foi candidato ao governo do Rio de Janeiro pelo PT, tendo sido derrotado por Moreira Franco; em 1989 concorreu à Presidência da República já pelo Partido Verde, obtendo 0,18% dos votos. 
Em 1994, Gabeira é eleito deputado federal pelo PV do Rio de Janeiro, sendo reeleito em 1998. Em 2002, trocou o PV pelo PT, sendo novamente eleito. Após considerar inaceitável a conduta do partido no início do governo Lula, em outubro de 2003 decidiu abandonar mais uma vez o PT, ficando algum tempo sem legenda. Um ano e meio depois estouraria o Escândalo do Mensalão. 
Em 2005, na Câmara, Gabeira chamou o então presidente Severino Cavalcanti de "vergonha para o país" e ameaçou começar um movimento para derrubar Severino se este continuasse a apoiar em nome do Congresso empresas que utilizam trabalho escravo.4 Também participou da CPI das Sanguessugas, em 2006, como um dos sub-relatores. 
Filiando-se novamente ao PV, Gabeira concorreu à reeleição em 2006 e foi o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro com 293.057 votos. 
Em 2008 Gabeira lançou uma campanha à prefeitura do Rio de Janeiro em uma aliança com o PSDB e o PPS. Ficou em segundo lugar no primeiro turno daquela eleições com 839.994 dos votos (25.61% dos válidos). No segundo turno, obteve 1.640.970 de votos (49,17% dos válidos) e perdeu por uma diferença de apenas 1,66% para Eduardo Paes.
Em 2009 Gabeira admitiu o uso indevido da sua cota parlamentar de passagens aéreas, possibilitando que terceiros, cujos nomes não foram divulgados, viajassem utilizando o dinheiro público. O próprio deputado federal admitiu à época que este escândalo pode significar a sua morte política, tendo inclusive cogitado abandonar a carreira pública, mudando de opinião logo em seguida.
 
Gabeira se candidatou a governador do Rio de Janeiro nas eleições de 2010, tendo ficado em segundo lugar com 20,68% dos votos válidos, derrotado pelo governador Sérgio Cabral Filho. 
Em 2010, em um projeto com a presidenciável Marina Silva, lançou o jogo online "Um Mundo" que aproveita a onda dos jogos de criação no estilo "Farm" e convida o visitante, mesmo não simpatizante, a contribuir com a criação de um mundo melhor.
No segundo turno das eleições presidenciais de 2010, Gabeira declarou apoio à candidatura de José Serra."